“Jogos Vorazes” estreia no Brasil em mais de 600 salas, numa aposta clara de provável substituto da “Saga Crepúsculo”, tanto para o público jovem (que também ficou órfão de “Harry Potter”) quanto para toda a indústria cinematográfica – do estúdio aos exibidores. Só que “Jogos Vorazes” não é “Crepúsculo”. Na verdade, exceto pelo fato de que as duas franquias originaram-se no universo literário e foram concebidas por autoras mulheres, as comparações só denotam diferenças, não semelhanças. E, em qualquer categoria, o filme baseado na obra de Suzanne Collins está muito à frente dos de Stephenie Meyer.
Num futuro não tão distante, os Estados Unidos viraram um país chamado Panem, dividido entre a região líder, Capital, e doze distritos extremamente pobres. Como punição por tentativa fracassada de uma revolução no passado, a cada ano esses estados subjugados são obrigados a fornecer, por meio de sorteio, dois jovens para participarem dos Jogos Vorazes. Trata-se de um programa televisivo no qual os participantes devem matar uns aos outros, até que apenas um sobreviva.
É uma ideia brutal – meninos e meninas de 12 a 18 anos dilacerando-se uns aos outros – e imaginar uma produção com tal sinopse como substituta de poderosas franquias soa estranho até que se iniciem as primeiras cenas. A colaboração da própria autora na adaptação do roteiro deve ter ajudado bastante a transposição, mas sem dúvida é a mão do diretor Gary Ross (“Seabiscuit – Alma de Herói”, 2003) a responsável pelo ótimo resultado do filme.
Ross, que também mexeu no roteiro ao lado de Billy Ray (“Intrigas do Estado”), soube superar os principais obstáculos da adaptação, a começar pela própria questão da violência. Se a Lionsgate (dona da Summit, estúdio produtor de “Crepúsculo”) sempre enxergou em “Jogos Vorazes” uma potencial franquia, seria preciso realizar um filme com censura PG-13. Com essa temática, como?
O diretor encontrou a resposta por meio de uma solução até relativamente ousada: o tom intimista. Ross optou (na verdade foi forçado) a esconder a violência, a sugeri-la, inclusive com elementos no extracampo, como sons e gritos. Ao abusar de closes, planos fechados e trepidações, o diretor fez do problema uma vantagem e transformou a câmera no ponto de vista de Katniss Everdeen, protagonista do filme.
E isso é extremamente útil porque, nos livros, a história é contada em primeira pessoa, narrada pela personagem. Katniss é uma garota de 16 anos que mora no distrito 12 e caça ilegalmente na floresta para alimentar sua família. Quando a Capital chega para convocar novos “tributos” (os jovens sorteados a participar dos jogos), ela voluntaria-se para proteger a irmã mais nova, que havia sido sorteada.
A solução mais óbvia, e pobre, seria utilizar-se de narração em off – desta forma, o espectador teria acesso aos pensamentos de Katniss. Mas Ross tinha um trunfo nas mangas, que atende pelo nome de Jennifer Lawrence. A jovem atriz que ganhou os holofotes pela indicação ao Oscar por “Inverno da Alma” (2010) mostra que não tem apenas talento e beleza. A garota possui aura de estrela, que faz a câmera apaixonar-se por ela e transforma todo o resto em secundário. Sabe aquela amiga que sempre sai bem nas fotos?
Jennifer brilha como Katniss e, em nenhum momento, o espectador cogita que a atriz tem 21 anos interpretando uma adolescente de 16. Ross sabe aproveitar essa vantagem e usa o carisma da garota como anzol, enquanto brinca com a câmera – o diretor explora, inclusive, o sensorial da personagem, alterando sons e o foco após explosões ou quando ela está dopada.
Ao utilizar as trepidações como ponto de vista de Katniss, o cineasta ganhou a desculpa para eclipsar a violência. Há sangue, há corpos e há morte. Mas a agressão perde o caráter espetacular e ganha ares de horror – afinal, são crianças com armas à mão.
A originalidade, por outro lado, não é exatamente o forte de “Jogos Vorazes”. A referência mais direta leva a “Battle Royale”, livro de Koushun Takami escrito em 1999 que já virou mangá e ganhou uma versão cinematográfica homônima cultuadíssima no ano seguinte – e que explora a violência gráfica com mais liberdade. Na história, o governo japonês de um futuro próximo escolhe alunos de uma sala de aula para participar de um jogo mortal no qual apenas um adolescente pode sobreviver.
Mas é possível encontrar argumentos semelhantes de batalhas brutais como forma de entretenimento em inúmeras produções cinematográficas, a partir de “clássicos” como “O Sobrevivente” (1987), com Arnold Schwarzenegger – um reality show, como os Jogos Vorazes -, até o pioneirismo de “A Décima Vítima (1965), filme italiano roteirizado pelo mestre Tonino Guerra, com Marcello Mastroianni no elenco.
A questão do totalitarismo e a derrubada do poder – um tema que será abordado nos (prováveis) próximos filmes da “Saga Jogos Vorazes” – também podem ser facilmente relacionados aos óbvios livros “1984”, de George Orwell, e à trilogia “The Tripods”, de John Christopher, que por sinal destaca personagens adolescentes. A autora, no entanto, prefere citar o mito grego de Teseu e o Minotauro e a história de Spartacus. A verdade é que nem faz tanta diferença. Originalidade nunca foi a prioridade de Hollywood e “homenagens” e “inspirações” podem render bons filmes – basta citar “Matrix” (1999), por exemplo.
Talvez o elemento mais fraco de “Jogos Vorazes” seja a crítica à superficialidade da estética proposta nos livros, que também simboliza o declínio moral dos valores da elite da Capital. No filme, os moradores do centro desenvolvido vestem-se de forma extravagante e exagerada (maquiagem over, cabelos coloridos, etc.), mas na prática parece uma imitação fraca do visual de “Laranja Mecânica” (1971). Tirando a participação de Stanley Tucci (“O Diabo Veste Prada”), acostumado a roubar a cena, e de Donald Sutherland (“Quero Matar Meu Chefe”) como o presidente ditador, os demais atores forçam na caricatura, caso de Elizabeth Banks (“À Beira do Abismo”) e Wes Bentley (“12 Horas”).
O mais irônico, no entanto, é constatar a diferença entre Katniss e Bella. Uma das grandes críticas direcionadas à “Saga Crepúsculo” era pelo posicionamento submisso da personagem interpretada por Kristen Stewart – e pela metáfora boba sofre a perda da virgindade. Em “Jogos Vorazes”, a protagonista é justamente seu negativo: uma garota durona, decidida e que usa o romance como arma – e que será a líder de uma revolução (ops, spoiler!). Em plena era de crise econômica mundial, Katniss nasce como uma candidata a heroína da nova geração. A menos que o sugerido triângulo amoroso ganhe mais destaque do que a questão política nas adaptações de “Em Chamas” e “A Esperança”.
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